quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O contador de sonhos - Noélio Mello (escritor e poeta paraense)

A chuva caiu imensa no final da tarde e, rapidamente, inaugurou a noite, sem lua, sem estrelas. Ruas inteiras foram alagadas provocando uma lenta procissão de carros. As calçadas cobriram-se com um tapete de folhas arrancadas das arvores pela impetuosidade do vento. A força das águas descidas das nuvens, correndo no meio-fio, formava pequenos rios, ansiosos, buscando seus caminhos na cidade. O embaraço no trânsito crescia a cada segundo fazendo parecer que o tempo tinha desistido de seguir seu rumo. Era um daqueles momentos da vida que nada se pode fazer, a não ser exercitar a paciência, a calma, a serenidade.

Desliguei o carro. Recostei a cabeça e, pensando em nada, dei um descanso para a minha mente, para o coração, para a alma. Nesse exato momento, como se tivesse saído da bruma do tempo, um homem idoso, de barba rala e nevada pela idade, com as marcas dos dias desenhando profundos riscos na pele do seu rosto, parcialmente encoberto por uma velha sobrinha vermelha, vendia, com uma voz calma, serena, sem angústias, sem pressa, beijos de moça em pequenas embalagens de plástico. Antes da minha resposta, insistiu, poeticamente. Compre, senhor, são feitos pelas doces mãos da minha mulher e com o açúcar mais doce do mundo.

Olhei para aquele homem de olhar cansado pela idade avançada, com as roupas molhadas pela chuva, pelas lágrimas do tempo, e fiquei pensando como a vida para poucos pode ser amena, feliz, suave, generosa e, para muitos, traiçoeira, rigorosa, madrasta. Tantos dentro de seus carros, com roupas secas, com casas confortáveis para descansar o corpo e aquele homem, ao alcance das minhas palavras, das minhas mãos, da minha alma, era obrigado a trabalhar enfrentando os mistérios da noite.

Talvez nem soubesse, pensei eu, num infantil rasgo de ingenuidade, que antes de vender beijos de moça, vendia uma lição de coragem, de humildade, de fé, de serenidade, de esperança, de resignação, pouco se importando com o rigor da chuva, do vento, da idade.

Saboreando os pedacinhos de sonhos que comprei e, ainda, encantado com a frase que ele usara para vendê-los, dei conta da estúpida insensatez do lado material do meu espírito. Como aquele homem poderia ser infeliz se vendia doces colocando tanta docilidade em suas palavras? Talvez fosse um poeta das ruas. Desses que cumprimentam a lua, se despedem das estrelas...

Fascinado, me aventurei a saber quanto vendia por dia. Meu amigo, respondeu - sinceramente eu não sei. Eu não conto dinheiro. Eu só conto os sorrisos dela nos cinqüenta e três anos de amor que estamos juntos, essa é a receita para nossa felicidade.

Fiquei calado. Ele agradeceu e seguiu seu caminho, tentando encantar outras almas, outros corações sensíveis.

Dentro do carro fiquei imaginando como a vida pode ser simples. Como o amor tem o poder insuperável de apagar as feridas hospedadas no espirito, de desviar os maus ventos que trazem tristezas. De fazer das saudades recordações felizes, inesquecíveis, quase confortáveis, sem angústias, sem o dissabor do infortúnio.

Da simplicidade de um coração que nunca permitiu abrir suas janelas para o desamor, recebi, feliz, uma doce lição de amor, ficando na certeza que no palco da vida, de um teatro sem platéia, sem aplausos, pródigo em exibir peças de tragédias, dramas e dores, o bom mesmo é o encanto, a alegria, a felicidade de poder contar diariamente com a ternura e os sorrisos da mulher amada. Afinal, quem de nós pode dimensionar o tamanho da felicidade alheia?

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Ocupe Wall Street - Mike Davis

Mike Davis, historiador e economista, autor de Planeta Favela (Boitempo, 2006), Apologia dos bárbaros: ensaios sobre o império (Boitempo, 2008) e Cidade de Quartzo: escavando o futuro em Los Angeles (Boitempo, 2009) nos enviou um texto exclusivo sobre o movimento Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street), que segue abaixo em tradução de Rogério Bettoni. No Blog da Boitempo, o leitor encontra o original em inglês no final do texto traduzido.

Chega de chiclete

Por Mike Davis

Quem poderia prever que o Occupy Wall Street e sua proliferação ao estilo de uma planta selvagem aconteceriam em cidades grandes e pequenas? John Carpenter previu. Há quase 25 anos (1988), o mestre do terror (Halloween, A coisa) escreveu e dirigiu They Live [“Eles vivem”, no Brasil], retratando a Era Reagan como uma catastrófica invasão alienígena. O filme continua sendo seu tour de force. Aliás, quem poderia esquecer das primeiras cenas brilhantes em que uma grande periferia terceiro-mundista é mostrada ao longo de uma autoestrada e refletida pelos arranha-céus espelhados de Bunker Hill, em Los Angeles? Ou da maneira como Carpenter retrata banqueiros milionários e ricos midiocratas dominando a pulverizada classe trabalhadora dos Estados Unidos, que vive em barracas numa encosta cheia de entulhos e implora por trabalhos casuais?

Partindo dessa igualdade negativa entre falta de moradia e desesperança, e graças aos óculos escuros mágicos encontrados pelo enigmático “Nada” (interpretado por Kurt Russell), o proletariado finalmente alcança a unidade inter-racial, não se deixa enganar pelas fraudes subliminares do capitalismo e fica furioso, extremamente furioso. Sim, eu sei, estou adiantando as coisas. O movimento “Occupy the World” ainda procura seus óculos mágicos (programa, demandas, estratégia e assim por diante), e sua fúria permanece baixa, em estado gandhiano.

Mas, como previu Carpenter, arrancar um número suficiente de cidadãos norte-americanos de suas casas e/ou carreiras (ou pelo menos atormentar dezenas de milhões com essa possibilidade) para promover algo novo e de grandes proporções é um movimento lento e cambaleante em direção ao Goldman Sachs. E, ao contrário do “Partido do Chá” [Tea party], até agora não há fios de marionete. Um dos fatos mais importantes sobre a revolta atual é simplesmente que ela ocupou as ruas e criou uma identificação espiritual com os desabrigados.

Para ser bem franco, a minha geração, educada no movimento dos direitos civis, teria pensado em primeiro ocupar os prédios e esperar que a polícia colocasse todos porta afora na base de cacetadas. (Hoje, os policiais preferem spray de pimenta e “técnicas não letais”.) Em 1965, quando eu tinha dezoito anos e participava da equipe nacional dos Estudantes para uma Sociedade Democrática, planejei uma ocupação do Chase Manhattan Bank, “parceiro do apartheid” por conta de seu papel central no financiamento da África do Sul depois do massacre de manifestantes pacíficos. Foi o primeiro protesto em Wall Street em uma geração, e 41 pessoas foram arrastadas de lá pela polícia.

Ainda acho que tomar o comando dos arranha-céus é uma ideia esplêndida, mas para um estágio mais avançado da luta. Até o momento, a genialidade do Occupy Wall Street é o fato de ter liberado alguns dos imóveis mais caros do mundo e transformado uma praça privada em um espaço público magnético e catalisador de protestos.

Nossa ocupação há 46 anos foi uma incursão de guerrilheiros; a de agora é uma Wall Street sob o cerco dos liliputianos. Também é o triunfo do princípio supostamente arcaico do cara a cara, da organização dialógica. As mídias sociais são importantes, é claro, mas não onipotentes. O sucesso da auto-organização dos ativistas – a cristalização da vontade política a partir do livre debate – continua sendo melhor nos fóruns urbanos da realidade. Dito de outra forma, a maior parte das nossas conversas na internet equivale ao padre sendo ensinado a celebrar a missa; até mesmo megasites como o MoveOn.com são voltados para um grupo que já sabe do que é dito, ou pelo menos para seu provável grupo demográfico.

As ocupações também são para-raios, acima de tudo, para as menosprezadas e alienadas tropas dos Democratas, mas, além disso, elas parecem estar derrubando barreiras de geração, proporcionando as bases comuns, por exemplo, para que os professores de meia-idade, ameaçados e que trabalham na educação básica, troquem ideias com jovens graduados e empobrecidos.

De maneira ainda mais radical, os acampamentos tornaram-se lugares simbólicos para reparar as divisões dentro da coalizão do New Deal impostas nos anos do governo Nixon. Como observa Jon Wiener em seu impecável blog, www.TheNation.com, “operários e hippies – juntos, finalmente”. Evidentemente. Quem não se comoveria quando o presidente da AFL-CIO, Richard Trumka – que trouxe mineiros de carvão para Wall Street em 1989 durante uma greve cruel, mas bem-sucedida, contra a Pittston Coal Company –, convocou homens e mulheres cheios de energia para “montar guarda” no Zucotti Park, apesar do esperado ataque da polícia de Nova York? Ainda que velhos radicais como eu sejam propensos a declarar como messias qualquer recém-nascido, essa criança tem o sinal do arco-íris.

Acredito que estamos vivenciando o renascimento das qualidades que definiram de modo tão marcante as pessoas comuns da geração de meus pais (migrantes e grevistas da Crise de 1929): uma compaixão generosa e espontânea, uma solidariedade baseada em uma ética perigosamente igualitária: Pare e dê carona a uma família. Jamais fure uma greve trabalhista, mesmo se sua família não puder pagar o aluguel. Compartilhe seu último cigarro com um estranho. Roube leite quando não houver para seus filhos e dê metade para as crianças do vizinho (isso foi o que minha própria mãe fez repetidas vezes em 1936). Ouça atentamente aos sagazes e serenos que perderam tudo, menos a dignidade. Cultive a generosidade do “nós”. O que quero dizer, suponho, é que me sinto extremamente impactado por aqueles que se juntaram para defender as ocupações apesar de diferenças significativas de idade, classe social e raça. E, da mesma maneira, adoro as crianças corajosas que estão prontas para encarar o próximo inverno e passar frio nas ruas, bem como seus irmãos e irmãs desabrigados.

Mas voltemos à estratégia: qual o próximo elo na corrente (no sentido de Lenin) que precisa ser apreendido? Até que ponto é imperativo para as plantas selvagens formar uma convenção, assumir demandas programáticas e, dessa forma, colocarem a si próprias no leilão das eleições de 2012? Obama e os Democratas certamente, e talvez desesperadamente, precisarão de energia e autenticidade. Mas é improvável que os “ocupacionistas” se coloquem à venda, ou seu extraordinário processo de auto-organização. Pessoalmente, tendo para uma posição anarquista e seus imperativos óbvios.

Primeiro, exponham a dor de 99%, levem Wall Street a julgamento. Tragam Harrisburg, Laredo, Riverside, Camden, Flint, Gallup e Hooly Springs para o centro financeiro de Nova York. Confrontem os predadores com suas vítimas. Um tribunal nacional sobre o genocídio econômico.

Segundo, continuem a democratizar e ocupar produtivamente o espaço público (isto é, reivindicar os bens comuns). O veterano historiador e ativista Mark Naison, do Bronx, propôs um plano arrojado para transformar os espaços degradados e abandonados de Nova York em recursos de sobrevivência (jardins, áreas de acampamento, playgrounds) para desabrigados e desempregados. Os manifestantes do Occupy em todo o país agora sabem como é ser desabrigado e não poder dormir em parques ou numa barraca. Mais uma razão para arrebentar as amarras e escalar os muros que separam o espaço não usado das necessidades humanas urgentes.

Terceiro, fiquem atentos à verdadeira recompensa. A grande questão não é subir os impostos dos ricos ou realizar uma melhor regulamentação dos bancos. Trata-se de uma democracia econômica – o direito das pessoas comuns de tomar macrodecisões sobre investimento social, taxas de juros, fluxo de capital, criação de empregos, aquecimento global e afins. Se o debate não for sobre o poder econômico, ele é irrelevante.

Quarto, o movimento deve sobreviver ao inverno para combater o poder na próxima primavera. As ruas são frias em janeiro. Bloomberg e todos os outros prefeitos e autoridades locais estão contando com um inverno rigoroso para acabar com os protestos. Por isso é muito importante reforçar as ocupações durante as férias de Natal. Vistam seus casacos.

Por fim, precisamos nos acalmar – o itinerário do protesto atual é totalmente imprevisível. Mas se alguém erguer um para-raios, não podemos nos surpreender caso caia um relâmpago.

Banqueiros entrevistados recentemente no The New York Times parecem considerar os protestos do Occupy pouco mais que um incômodo baseado, segundo eles, numa compreensão rudimentar do setor financeiro. Eles deveriam ser mais humildes. Na verdade, deveriam tremer diante da imagem da carreta de munições. Quatro milhões e meio de empregos na área industrial foram perdidos nos Estados Unidos desde 2000, e uma geração inteira de recém-graduados encara agora a mais alta mobilidade descendente na história do país. Desde 1987, afro-americanos perderam mais da metade de seu patrimônio líquido; os latinos, inacreditáveis dois terços. Arruinar com o sonho americano e com as pessoas comuns será extremamente prejudicial para vocês. Ou, como Nada explica aos agressores imprudentes no excelente filme de Carpenter: “Vim aqui para mascar chiclete e quebrar tudo… e meus chicletes acabaram.”


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Como configurar o controle remoto da sky? (utilidade pública)

Talvez você não saibam, mas é possível utilizar o controle remoto da sky como controle da TV.
Assim, aqueles que vierem a trocar de aparelho de tv ou adquirir um novo, deverão configurar o controle da sky e pronto, utilizarão um só controle para a sky e para a tv.
Os códigos das marcas de tv são:
- Samsung 030
- Lg Cinemaster 002 ou 004
- LG 32pc5rv 1206
- Sony 036
- CCE 016 ou 0016
- Panasonic 254
- Semp Toshiba 0149 ou 033
- Philco 034
- Mitsubshi 055

Sigam as instruções abaixo:

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Homenagem de Paulo Paixão às mulheres amazônidas

Meu anjo sumiu…


Como a ave que sumiu
Por sobre a margem,
Foste sem dizer para onde…
Ouço esta canção de saudade
Que mais dói que encanta…
Bebo uns copos,
Fumo umas folhas para
Ver-te…
A fumaça amassa as lamúrias
Porque te vejo por sobre
O rio, além da mata, além do fio
Do horizonte…
Conte-me, amor, onde andaste?
Por que me abandonaste?
Não bastaram os beijos, os abraços,
O meu corpo no teu regaço…
E os dias de verão, ventosos
Só nossos, a branca areia, o luar
E o violão…
Não bastaram os risos, os afagos,
As doses fogosas com limão, nem
Minhas mãos nas tuas mãos…
Não bastou a canção de Alison Krauss
Que dançamos de rosto colado
E os corpos adentrados
Sob efeito das borbulhas
De fine champagne…
Amada, em que errei?
Em que tropecei?
Fi-lo por excesso ou
Por escassez?
Fugiste da fumaça que soprei
Ou evaporaste como fumaça
Cansada da eterna viagem?
Ou foram taças e mais taças
Que só faziam aflorar canções
De amor,
Mas que nunca me fizeram
Pisar o chão de barro e lama?
Disseste-me, um dia, que eu só vivia
Pra sonhar
E imaginar um mundo distante
Onde tudo são só amor e flores…
Onde tudo são só amor e flores…
E continuo, meu anjo, olhando o infinito
Com o fito de ver-te além das nuvens
Vestida de noiva ou de vestido longo
Cantando qual soprano
De uma sinfônica vienense
A canção de uma história de amor.
Vem, amor meu, nesta canção
Mesmo que se esvaindo nas nuvens…
- – - – - – - – - – - – - – - – - – - – - – - – - – -
De Paulo Paixão, poeta amazônico nascido em Santarém, do Tapajós.



COMENTÁRIO DO POSTER:
 
Preciso confidenciar a vocês que sinto uma inveja boa daqueles que têm o dom de escrever poemas.
Penso que tal dom é nato e não pode ser adquirido através do estudo ou da maturidade.
Saúdo o amigo poeta Paulo Paixão (cuja alcunha carinhosa é "poeta do encontro das águas") por  mais uma pérola, desta feita, em homenagem às mulheres amazônidas, todas, sem exceção, afinal, nos dão vida e  prazer.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Planejamento Urbano: um dever do poder público *

O século passado foi caracterizado pela rápida urbanização das cidades brasileiras. Para que tenhamos idéia da dimensão da urbanização brasileira, atualmente, em torno de 80% dos brasileiros residem nos centros urbanos.
Entretanto, o fenômeno da urbanização brasileira não foi acompanhado de um racional e efetivo planejamento estatal, fazendo com que as cidades crescessem horizontal e informalmente, gerando um enorme passivo socioambiental nos centros urbanos.
Um dos resultados da inércia estatal são as áreas ocupadas informalmente e sem regularização fundiária, cujo exemplo mais evidente são as favelas urbanas sejam elas em áreas planas do território ou em morros.
Em verdade, a história do incipiente planejamento das cidades coube, quase que exclusivamente, aos arquitetos e urbanistas e talvez por isso não tenha alcançado um grau de eficiência aceitável.
A problemática da urbanização é tão séria que tenho a convicção que uma mitigação da mesma só será possível quando técnicos e profissionais de várias em áreas do conhecimento humano, em comunhão total, reflitam sobre qual a cidade que queremos.
Sendo assim, arquitetos, urbanistas, geógrafos, economistas, juristas etc ... devem aprofundar seus estudos para que, em um médio prazo, possamos habitar cidades com maior qualidade ambiental, mais salubres e por que não, mais felizes.
Todavia, será totalmente ineficaz a criação do conhecimento acadêmico se o poder público não utilizá-lo. São necessárias: vontade e conscientização política.
Por sua vez, as municipalidades, com o auxílio dos governos estaduais e federal, têm o dever de criar equipes técnicas integradas e competentes que possam elaborar propostas factíveis capazes de promover a regularização e o ordenamento do território das cidades e das metrópoles.
É necessário deixar a política em um segundo plano e priorizar a alternativa técnica, por mais que a mesma seja antipática. O interesse público deve prevalecer sobre o interesse individual e tal lógica é principiológica.
O conjunto de propostas que podem ser elaboradas, sem dúvida, apresentarão um caráter interdisciplinar, mas será inevitável que estejam de acordo com o ordenamento jurídico urbanístico constitucional e infraconstitucional brasileiro.
Este é um obstáculo que precisa ser vencido, o Direito Urbanístico e sua interface com o meio ambiente, seus princípios e regras, precisa ser visto através de outras lentes de modo que ele venha a ser respeitado e levado em consideração nas decisões judiciais, pelos parlamentos e pela sociedade.
É para assustar você leitor, pois apesar da evidente crise urbana pela qual estamos atravessando, fique sabendo que os currículos dos cursos de Direito no Brasil não possuem a disciplina Direito Urbanístico a não ser que seja uma disciplina optativa. Tal fato ratifica a falta de importância atribuída ao estudo das normas, princípios e regras do Direito Urbano-ambiental e o resultado é este que estamos observando cotidianamente pela imprensa, ou seja, o caos urbano: no transporte, na habitação, no saneamento básico, na saúde e na moradia.
Com afirmei acima, estamos diante uma questão muito séria e para ratificar a seriedade do debate não seria necessário mencionar as catástrofes ocorridas na região serrana do Estado do Rio de Janeiro onde até agora mais de 500 seres humanos pagaram com suas vidas o preço da incompetência e descaso do Poder Público.
Alguns dirão que foi uma catástrofe natural e que nada poderia ter sido feito tamanha a força da natureza. Peço desculpas àqueles que pensam dessa maneira e ousarei discordar, pois o que está ocorrendo nas cidades do Rio de Janeiro e em quase a totalidade das cidades brasileiras é sim um desastre, mas uma catástrofe administrativa e de gestão das cidades.
As municipalidades viraram as costas de maneira criminosa para a problemática da regularização e do ordenamento das cidades e metrópoles brasileiras, propiciando que tragédias como as que somos obrigados a ver nos telejornais repitam-se a cada ano e de maneira mais contundente.

BRUNO SOEIRO VIEIRA
é Auditor Fiscal, Mestre em Direito e Professor.
(brunovieira@fap-pa.edu.br)

* Artigo publicado no jornal Diário do Pará no dia 16/01/2011.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A TRAGÉDIA DA HABITAÇÃO POPULAR por Edésio Fernandes

A tragédia da habitação popular

Edésio Fernandes*

A história é antiga, mas tem se repetido com maior frequência e intensidade em diversas cidades brasileiras: enchentes de rios e córregos, inundações, deslizamento de barrancos, desabamento de barreiras, enxurradas de lama, destruição de vegetação, infraestrutura, equipamentos e construções, e todo tipo de danos materiais – e sobretudo um número cada vez maior de mortes. A quantidade absurda de chuvas que caiu na Região Serrana do Rio de Janeiro, causando o maior desastre natural da história do Brasil, parece estar relacionada ao processo de aquecimento global que recentemente afetou outros países como Colômbia, Austrália e Sri Lanka. É justo dizer que um fenomeno natural desse porte causaria forte devastação em qualquer parte do mundo. Contudo, há fatores de natureza bem brasileira que explicam o enorme impacto destruidor das chuvas e sobretudo o número obsceno de mortes, especialmente se comparados com os impactos de desastres em outros países em desenvolvimento. Se existem discussões científicas acerca do papel da ação humana no processo de aquecimento global, não restam dúvidas de que as tragédias brasileiras resultam em grande parte do padrão de ocupação do solo e desenvolvimento urbano no país, e de que os impactos dos desastres poderiam ser menores se os gestores públicos brasileiros tivessem uma maior responsabilidade territorial.

Visitando as áreas atingidas, a Presidente Dilma Rouseff declarou com precisão: "Vimos áreas nas quais montanhas nunca tocadas pelo homem se dissolveram. Mas, também vimos áreas nas quais a ocupação ilegal causou danos à saúde e à vida das pessoas.” Como ocorreu em Angra dos Reis em 2010, as enchentes e os deslizamentos também atingiram áreas ocupadas por grupos privilegiados, que segundo os dados existentes ocupam a enorme maioria das encostas no Rio de Janeiro, embora em densidade menor do que as das favelas. Entretando, o número de mortes foi infinitamente maior nas áreas ocupadas pelos mais pobres nas encostas, várzeas e fundos de vale. A Presidente declarou que “a ocupação de áreas de risco é a regra, e não a exceção, no Brasil”, e perguntou: “Quando não há políticas habitacionais, onde as pessoas que ganham menos de dois salários mínimos vão viver?”

De fato, desde o começo do Séc. XX, o crescimento urbano no país tem se caracterizado pela falta de políticas fundiárias e habitacionais de interesse social. O planejamento territorial e as leis de uso do solo são elitistas, reforçam a estrutura fundiária concentrada, geram altos valores para os proprietários de imóveis, e não reservam áreas centrais para os pobres. Há um estoque de 5.5 milhões de imóveis vazios ou sub-utilizados que não cumprem uma função social. A presença do Estado através de serviços e equipamentos se concentra nas áreas “nobres” das cidades. Os mercados imobiliários formais não oferecem lotes/unidades habitacionais para os pobres, e as políticas habitacionais nos três níveis governamentais são insuficientes e inadequadas. Cerca de 93% do déficit habitacional, calculado entre 6.4 e 7.9 milhões de unidades, se concentra nas famílias que ganham entre 0 e 3 salários mínimos.

Para a maior parcela da população, o acesso informal ao solo urbano nas favelas e loteamentos clandestinos tem historicamente oferecido mais e melhores opções de moradia do que os setores estatal e privado juntos. Mesmo com os investimentos recordes em infraestrutura e produção habitacional feitos no governo Lula, os recursos do Programa Minha Casa, Minha Vida somente chegam às familias que ganham mais de 5 salários mínimos, além do que, na falta de integração com politicas fundiárias, esse programa tem reforçado problemas estruturais. Sem opções formais de acesso à moradia, os mais pobres tem cada vez mais ocupado as áreas excluídas dos mercados imobiliários formais, especialmente áreas de preservação ambiental e áreas públicas, pagando preços cada vez mais altos, inclusive financeiros, para viverem em condições extremamente precárias - e ficando assim muito mais vulneráveis aos desastres naturais.

Trata-se de um padrão perverso de urbanização de risco e segregação sócioespacial, expressão de um processo de desenvolvimento urbano especulativo sem compromisso com qualquer sustentabilidade sócioambiental. Faltam políticas de saneamento, ações de gestão dos riscos e medidas de prevenção de desastres nos assentamentos informais. Não há políticas curativas consistentes para a regularização desses assentamentos, e nem políticas preventivas de democratização do acesso ao solo com serviços e à moradia. Não há fiscalização das ações ilegais de ricos e pobres; pelo contrário, o clientelismo político tem se renovado à custa da reprodução da informalidade. Mesmo quando existem recursos, não há projetos técnicos adequados e nem capacidade de gestão administrativa na escala necessária. Longe de promoverem uma ampla reforma urbana, muitas administrações públicas tem abraçado com vigor a ideologia de mercantilização plena das cidades, a serviço dos velhos interesses de grupos econômicos poderosos. A classe média fecha os olhos aos problemas dos pobres, quando não reage de maneira insensível e intolerante. Em muitos casos, o discurso ambientalista tem sido utilizado, não para enfrentar problemas e oferecer soluções possíveis, mas para justificar remoções de milhares de familias sem que opções adequadas lhes sejam oferecidas – assim perpetuando o problema da informalidade. Respostas institucionais pontuais e fragmentadas são dadas na sequência de um desastre, mas são logo abandonadas até a próxima tragédia.

Se os pobres são certamente os grupos mais diretamente afetados, os desastres naturais cada vez mais extremos já mostraram, no Brasil e em outros países, que não distinguem entre grupos sociais. Na falta de articulação de políticas urbanas, fundiárias, habitacionais e ambientais, todos vamos pagar preços cada vez mais altos, direta e indiretamente, pela história de irresponsabilidade territorial: moradores de favelas e loteamentos irregulares, de faixas litoraneas e encostas, de centros urbanos e de condomínios exclusivos. Nesse jogo perverso, todos perdemos.

* Jurista e urbanista
* contato: edesiofernandes@compuserve.com